Socialwashing: a minha causa não é o teu marketing

Numa era em que todos querem ter uma voz pela justiça social, esta torna-se um instrumento de publicidade para veicular os valores das empresas.
Numa era em que todos querem ter uma voz pela justiça social, esta torna-se um instrumento de publicidade para veicular os valores das empresas.

Ideias a retirar:

Uma das tendências de marketing mais recentes passa pela utilização de causas sociais como instrumentos de publicidade. 

É uma estratégia que durante muitos anos foi ignorada pelas empresas, com medo de dividir os seus consumidores. No entanto, hoje é uma fonte de lucro.

Por se converter em vendas elevadas, a tomada de posições pelas empresas viabilizou o fenómeno de socialwashing: a utilização de comunicações sociopolíticas para a obtenção de benefícios económicos.

Ainda assim, é possível defender uma causa social enquanto marca sem cair nesse erro. Basta que essa esteja enraizada na autenticidade.

 

 

O primeiro de junho é um dia especial para as empresas (e não é porque é o Dia da Criança). É o dia em que, após um debate aceso em departamentos de marketing por todo o mundo, se decide cobrir o logótipo da empresa com uma bandeira de orgulho LGBTGQIA+. Também conhecido como mês do pride, junho foi a data escolhida para celebrar os direitos LGBTGQIA+, e relembrar os ataques que ainda hoje persistem, em memória da revolta de Stonewall, que se deu nos Estados Unidos da América em junho de 1969. E as marcas sabem disso – ou, pelo menos, sabem que podem beneficiar disso.

Usar causas sociais como instrumento de publicidade não é um fenómeno que se limita à visibilidade queer. A maioria das marcas contemporâneas assume-se como feminista, antirracista e ambientalista, e ainda quaisquer outros “istas” que possam surgir no debate público em determinada altura.

No entanto, nem sempre foi assim. Até há poucos anos, as marcas eram aconselhadas a manter uma posição neutral face aos assuntos sociopolíticos que emergissem. Ao optar pelo silêncio, estariam a agradar a todas as fações do seu público (mesmo que estivessem divididas), de maneira que as suas ideologias nunca minimizariam a possibilidade de obtenção de lucro. O que mudou?

Em primeiro lugar, o consumidor mudou. A informação nunca foi tão abundante e, por esse motivo, os cidadãos ganharam um maior poder de escolha e decisão no mercado. As gerações mais jovens, principalmente, preferem apoiar marcas que partilhem os seus valores, afastando-se daquelas que não tomam posições políticas.

Em segundo lugar, o mercado mudou. Os últimos anos foram marcados por movimentos sociais fraturantes, como o Black Lives Matter e o MeToo, que não deixaram ninguém indiferente. A publicidade é uma parte integrante da cultura popular, logo, à medida que os debates sociais foram tomando conta da narrativa, também as marcas passaram a ter um papel a desempenhar na luta pela justiça social. E, pelo caminho, aperceberam-se de que até podiam ter muito a ganhar com isso.

Na tese número 23 do “Manifesto Cluetrain” (um livro publicado em 1999 sobre as novas dinâmicas do mercado), pode ler-se o seguinte: “(…) as empresas que se procuram posicionar estrategicamente têm de tomar uma posição, idealmente sobre algo em que o seu mercado esteja muito interessado”. Como referimos acima, o consumidor contemporâneo não quer apenas consumir, mas sim que o seu consumo tenha um impacto positivo. Assim sendo, acaba por dar preferência às empresas que defendem valores semelhantes aos seus. Isto é, consequentemente, um motor de lucro. Tomar uma posição social aceite pelo seu público-alvo dota a empresa de elevada reputação que, por sua vez, se converterá em vendas.

Agora perguntamos nós: se as marcas sabem que promover causas sociais pode levar ao aumento dos seus lucros, o que as impede de usar esta ferramenta como uma “máquina de fazer dinheiro”? Infelizmente, nada. Esse é o núcleo do socialwashing (também conhecido como wokewashing), que se define como a utilização de comunicações sociopolíticas para a obtenção de benefícios económicos. Em termos leigos: não importa a causa que estamos a defender, apenas o dinheiro que essa defesa nos pode trazer.

São várias as repercussões negativas geradas por uma estratégia de socialwashing. É, logo à partida, um abuso da confiança dos consumidores, que se pode traduzir numa grave crise para a empresa quando descoberto o fosso entre as suas comunicações e os seus verdadeiros comportamentos.

Também pode constituir uma regressão na luta pela própria causa. Embora a publicidade funcione como um meio de sensibilização, esta pode veicular informações falsas ou irrelevantes. Isto ocorre, por exemplo, quando uma empresa escolhe posicionar-se no combate ao racismo sem nunca consultar uma pessoa de cor acerca do que esta realmente sofre. Mais do que comunicar os problemas, é necessário que membros das comunidades afetadas tenham um lugar à mesa, pois só assim se garante uma comunicação baseada na autenticidade e honestidade.

Tendo em conta estes problemas, será possibilitar realizar uma estratégia de marketing de causas sem que esta se transforme em socialwashing? Sim, mas, logo à partida, é necessário deixar de ver causas sociais como oportunidades de publicidade. Tal como os cidadãos, as empresas têm direito a comunicar os seus valores, mas nunca devem fazê-lo com o objetivo de gerar lucro.

Para começar, a proximidade à causa é um fator indispensável à criação de comunicações autênticas. Se a fundadora de uma marca se identifica como assexual, é natural que queira utilizar a voz e o poder da sua empresa para lutar pelos direitos LGBTGQIA+. E isto significa, consequentemente, que as marcas não precisam de tomar uma posição em todos os assuntos sociais que surgem. Caso exista um problema na sociedade que não consigamos percecionar na totalidade, há que dar prioridade à informação; isto é, primeiro informamo-nos e, só depois, se fizer sentido, apresentamos a nossa posição face ao caso.

Por esse motivo, não faz sentido agir apenas quando existe pressão pública. Após o assassinato de George Floyd nos Estados Unidos da América em 2020, inúmeras marcas que nunca tinham abordado a luta antirracista utilizaram este triste acontecimento para comunicar uma posição que, ainda que possa corresponder aos seus valores, resultou do medo de receber backlash caso se mantivessem em silêncio. Reforçamos que, aqui, a informação interna deve ser priorizada face à comunicação de princípios. Já o dissemos e voltamos a dizer: não devemos comunicar aquilo que não compreendemos.

Por fim, há que garantir a veracidade das afirmações declaradas. Isto devia ser óbvio, mas, muitas vezes, empresas que tomam posições feministas promovem práticas que põe em causa direitos fundamentais das mulheres. É um fenómeno muito comum na indústria da moda, cujos lucros elevados subsistem à custa da discriminação de género perpetuada na cadeia de produção. Como se diz em inglês, é preciso walk the talk. São os comportamentos que devem estimular a comunicação de valores, e não o contrário.

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