Ideias a retirar:
Durante muito tempo, o desenvolvimento sustentável baseou-se em comportamentos de índole ambiental, social e económica. Porém, esses três campos não são suficientes para abranger toda a mudança.
A cultura reflete os valores das sociedades e, por isso, desempenha um papel fundamental na construção de um futuro mais sustentável.
O caso do plágio da camisola poveira, em 2021, ajudou a perceber a importância do pilar cultural na moda.
É preciso investir em artesanato local, bem como na inclusão e diversidade na indústria têxtil e de vestuário. Essas são as práticas que permitem a integração do pilar cultural.
A abordagem dos três Ps – people, planet, profit (em português, pessoas, planeta, lucro) – permeia o conceito de sustentabilidade desde que John Elkington, autor e consultor britânico, cunhou a abordagem triple bottom line para retratar o desenvolvimento sustentável das indústrias. Desde então, sempre que nos referimos à sustentabilidade, de acordo a sua definição atual, é nestes três domínios que nos baseamos: na sociedade, no ambiente e na economia.
À primeira vista, tais áreas são suficientes para cobrir a vastidão de comportamentos necessários a um futuro mais sustentável. A sociedade trata o bem-estar das populações, podendo estar associada às condições de trabalho, remunerações e direitos dos trabalhadores. O ambiente debruça-se sobre os recursos naturais, evidenciando, a título de exemplo, os limites planetários e as consequências nefastas da poluição. Por fim, a economia – um parâmetro controverso, visto ser, para alguns, negligenciável e, para outros, demasiado relevante – procura uma constante melhoria da qualidade de vida dos cidadãos.
Na jornada que é o desenvolvimento sustentável de um setor, estes três domínios devem coexistir em equilíbrio, sendo dotados de igual importância. Todavia, há quem se comece a questionar sobre se não estaremos a deixar algo para trás. Fala-se, por exemplo, sobre a integração dos direitos dos animais: a que parâmetro pertence? Será um assunto ambiental ou precisa do seu próprio espaço? E a diversidade e inclusão? Não poderão estes temas ficar esquecidos se forem limitados ao domínio social?
É com esta premissa em mente que os especialistas de sustentabilidade, em geral, e na moda, em particular, se mostram empenhados em acolher um quarto pilar do desenvolvimento sustentável – o pilar da cultura.
A cultura tem um papel fundamental na representação dos valores das sociedades. Estes valores têm, por sua vez, repercussões nos comportamentos ambientais, sociais e económicos do presente. No entanto, ao invés de pensarmos na cultura como um suplemento aos pilares da sustentabilidade, o que aconteceria se lhe déssemos o seu próprio espaço, enquanto alavanca da mudança global?
Talvez a forma mais simples de perceber o papel da cultura na sustentabilidade é através de um exemplo. Algo que recai sobre o domínio cultural é a proteção das técnicas de artesanato locais – pensemos, nomeadamente, na camisola poveira, natural da Póvoa do Varzim, em Portugal. Esta prática ancestral é essencial ao desenvolvimento sustentável da indústria da moda por trazer vantagens de índole ambiental, social e económico.
- No ambiente, é uma prática que impulsiona as tendências de slow fashion, ao valorizar o tempo de renovação de fibras naturais – neste caso, da lã – e da própria cadeia de produção. Tradicionalmente feita à mão, a sua confeção estende-se ao longo de dezenas de horas. Por esse motivo, dificilmente pode ser fabricada em massa.
- Na sociedade, funciona como um meio de subsistência para os artesãos, estando essa remuneração justa refletida no seu preço final. Ao estar completamente dependente do conhecimento e talento dos trabalhadores, a produção da camisola poveira beneficia de ver todas as condições mínimas de trabalho asseguradas.
- Na economia, serve a comunidade local, dada a especialização da comunidade piscatória da Póvoa do Varzim nesta técnica de artesanato. Caso uma empresa internacional queira integrar a camisola poveira no seu portefólio, idealmente empregará os profissionais poveiros com esse objetivo, o que afetará positivamente a economia local.
Quando, em 2021, a criadora estadunidense Tory Burch plagiou o design da camisola poveira, todos estes princípios foram desrespeitados. Ao não ter sido protegido o capital cultural da Póvoa do Varzim, surgiu uma camisola fabricada em massa – logo, com pior impacto ambiental -, confecionada em países onde os direitos dos trabalhadores tipicamente não são respeitados e sem qualquer retorno para a economia poveira. Pelo menos, até Burch ter feito um acordo com a Autarquia da Póvoa de Varzim, procurando reverter o seu erro.
Casos de apropriação cultural como aquele que se verificou com a camisola poveira não são escassos, muito menos culminam sempre num final “feliz”. Basta pegar nas repercussões listadas acima e multiplicá-las por todos os tipos de artesanato local que, ano após ano, são copiados por empresas de fast fashion, para perceber as consequências negativas que negligenciar o domínio cultural traz à indústria da moda contemporânea. Todavia, é possível reverter a situação, e tudo começa com a associação da cultura à sustentabilidade.
Apesar de não estar somente centrada em técnicas de artesanato locais, estas são uma parte crucial da sustentabilidade cultural. Numa sociedade viciada em moda rápida, é cada vez mais difícil manter tais conhecimentos vivos, perdendo-os a cada geração que se renova. Para contrariar essa tendência, pedem-se investimentos e educação. Investimentos, em primeiro lugar, por parte das grandes empresas e governos que reúnem as condições para apoiar financeiramente este tipo de atividades. Depois, educação, de modo a que novos criadores possam conhecer e aprofundar as heranças da sua cultura.
É importante que a proteção do capital cultural avance de mãos dadas com a expansão da representatividade e inclusão no setor têxtil e de vestuário. Como já estabelecemos, esta não se concretiza quando uma marca internacional opta por plagiar as práticas de uma comunidade. São os representantes dessa mesma comunidade que devem receber um lugar à mesa, onde as suas vozes e opiniões têm mais força.
Este é o tipo de inclusão que raramente se vê na moda. Cai-se facilmente numa diversidade “promocional”, espelhada nas redes sociais e em desfiles alegadamente inclusivos, quando a representação na cultura interna de uma organização tem tanto ou mais impacto para o desenvolvimento sustentável da indústria.
Por fim, ressalta o papel do consumidor-cidadão. Aquele que tem o poder de elevar os seus valores através dos hábitos de consumo, das suas manifestações de ativismo, do exercício da sua cidadania. Também aqui há um papel a desempenhar, tal como existe nos outros três parâmetros que habitualmente caracterizam a sustentabilidade. A integração do quarto pilar, o pilar cultural, é um trabalho coletivo, que pode começar já hoje, a partir do dispositivo com que lês este artigo. Abre um motor de busca e procura: qual é tipo de artesanato natural à minha comunidade e o que posso fazer para o preservar? Segue os caminhos por onde a resposta te levar.
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